quinta-feira, 22 de março de 2018

Os culpados pela morte de Marielle

A execução da vereadora Marielle Franco levou à eclosão de mais um capítulo da batalha político-ideológica no país. Ainda não se sabe se ela foi vítima de milicianos, traficantes ou quem quer que seja, mas se enxerga e se aponta responsáveis por todo o lado. Há quem veja culpa no Governo Michel Temer, que ainda não parece saber muito bem como intervir na segurança do Rio de Janeiro. Para outros, a culpada é a própria Marielle, porque, enquanto militante do PSOL, ela promovia, segundo eles, políticas que favorecem criminosos. De quem é a culpa?

A luta política é implacável na era das redes sociais. Pelo jeito, não há possibilidade de trégua nem nos momentos mais traumáticos. Nem todo mundo aproveitou a morte da vereadora para fazer política, mas basta que alguns o façam para ficar a impressão de que estão todos envolvidos nisso, mentindo, ofendendo, difamando, ridicularizando, selecionando e expondo o pior dos adversários. Quem não gosta da agenda ideológica representada por Marielle tenta diminuir o valor de sua morte. Mas é muito mais fácil engrandecer do que diminuir uma morte como essa. Por outro lado, dizer que a vereadora foi morta porque era mulher ou negra ou por conta de sua sexualidade não ajuda a entender o que aconteceu.

A vida de Marielle vale tanto quanto a do motorista Anderson Gomes, que morreu junto com ela, e a de Cláudio Henrique Costa Pinto, assassinado na frente de seu filho de cinco anos durante uma tentativa de assalto na Zona Norte do Rio de Janeiro naquela mesma noite. Todas essas vidas também valem tanto quanto as dos quase 30 policiais mortos no Estado apenas neste ano. A diferença do caso de Marielle para os outros — e talvez os policiais merecessem mais comoção nesse sentido — é que, junto com ela, as balas da pistola 9mm acertaram o Estado brasileiro. E o Estado brasileiro, representado, nesse caso, pelo cargo de vereador, somos todos nós. A ordem institucional foi alvejada.

Apontar o dedo para o outro lado numa hora como esta parece inevitável. E quem achar que é hora de avançar agendas político-ideológicas, porque isso vai melhorar alguma coisa, que o faça. É legítimo, ainda mais para aqueles que sempre militaram ao lado de Marielle. Mas talvez não seja disso que o país mais precise agora. A editora Todavia lançou neste início de ano um livro escrito pelo filósofo alemão Karl Jaspers intitulado A questão da culpa - A Alemanha e o nazismo, um eloquente tratado sobre a necessidade de entendimento escrito logo após a derrocada nazista, em 1945. O Brasil está muito longe do terror nazista — e que isso sirva de consolo para quem estiver buscando algum —, mas as reflexões de Jaspers vêm a calhar.

O filósofo está interessado em entender qual é a culpa dos alemães em relação aos crimes cometidos pelo regime nazista. Nem todos os alemães participaram das atrocidades comandadas por Adolf Hitler, alguns inclusive se opuseram a elas, mas todo o povo alemão carrega nas costas até hoje o fardo do Holocausto. Para iniciar essa reflexão, Jaspers divide a culpa em quatro dimensões: a criminal, pela qual os chefes nazistas foram julgados em Nuremberg; a política, que rendeu punições ao Estado alemão; a moral e a metafísica, que não podem ser atribuídas por terceiros, pois cabe a cada indivíduo reconhecê-las — no caso da Alemanha, era disso que dependia seu futuro após a Segunda Guerra Mundial.

Escorado no filósofo, portanto, eu pergunto: você tem alguma culpa pela morte de Marielle? Não a culpa criminal ou política, que pode vir a ser atribuída por outras pessoas a você, mas a culpa moral. O carioca tem alguma culpa pela situação em que sua cidade se encontra, ou são apenas os políticos os responsáveis pelo Rio de Janeiro? E o Brasil, chegou a essa situação de descontrole de gastos públicos por conta de quem? Pergunto porque não faz sentido dizer que você é culpado por nada disso, a não ser que você se sinta responsável de alguma forma, como brasileiro. E, se é responsável, o que você poderia fazer para melhorar a situação?

Jaspers inicia seu livro destacando a necessidade de diálogo: “É tão fácil defender juízos firmes carregando nas emoções; é difícil elaborar de forma serena. É fácil interromper a comunicação com afirmações bruscas; é difícil penetrar incessantemente no fundo da verdade, para além das afirmações. É fácil adotar uma opinião e mantê-la para poupar-se o trabalho de continuar pensando; é difícil avançar passo a passo e não impedir mais questionamentos”. Se você acredita na agenda dos direitos humanos, é hora de se perguntar por que não consegue convencer seus adversários políticos da importância disso. O mesmo vale para quem não acredita na forma como essa agenda é promovida: por que algumas pessoas acham que você é um monstro?

Empurrar a culpa para o outro lado é o mais fácil. Mas as pessoas de quem você discorda não vão sumir. A internet permitiu que questões que eram dadas como consensos ressurgissem. Na verdade, essas questões nunca deixaram de existir. E o funcionamento da nossa República depende do diálogo entre pessoas que pensam diferente, sem estigmas, sem deboches, sem distorções e, se possível, com as emoções sob controle. Jaspers cita Kant para dizer que “na guerra não pode haver atos que tornem simplesmente impossível uma conciliação posterior”. Não estamos tão mal quanto a Alemanha pós-nazismo, mas também não estamos bem o bastante para dispensar as oportunidades de diálogo que têm se apresentado.

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